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KE 3283f

V48-3
8.333

HARVARD COLLEGE LIBRARY

FROM THE LIBRARY OF

FERNANDO FALHA.

DECEMBER 3, 1928 ·

AO LEITOR.

Em 1854, sob o titulo de Eneida Brazileira, publiquei a traducção da epopéa de Virgilio; agora publíco a de todas as suas obras, ao menos daquellas que sam delle incontestavelmente. Fiz muitas correcções á minha Eneida, accrescentei as notas, e nesta edição tive mais cuidado com a orthographia; comquanto neste ponto sinto-me disposto a acceitar o que decidirem os competentes, sem insistir nas minhas opiniões.

Constando-me que, principalmente no Brazil, acharam escuros alguns lugares da Eneida, busquei saber quaes eram as escuridades ; e as que se communicaram, consistindo antes em termos antigos ou compostos, que na má construcção ou impropriedade, eu as explico sufficientemente, não aos conhecedores da lingua, mas aos que não se querem dar ao trabalho de consultar os nossos bons autores: resolução que tomei contra meu gosto, accedendo ao de pessoas estudiosas que assim mo aconselharam.

Pois dou á luz a traducção inteira, com o texto em frente, julguei util uma breve noticia do poeta aos que não tiverem vagar ou paciencia de ler os commentadores, criticos e biographos.

No fim das Bucolicas, e dos livros das Georgicas e da Eneida, a cada nota ponho dous numeros: um indica o verso do original; o segundo, o correspondente na traducção. Quando cito um so numero, entenda-se que he do original. Advirto que na Eneida coméço a contar desde Ille ego qui quondam, em razão do que declaro na primeira nota ao livro I, e lá deixei a especie de prologo da precedente edição.

Tenho que a minha obra sem inconveniente pode ser lida nas classes de latim; porque tal he a versão que, se os estudantes não meditarem no texto, só com ella não o saberão reduzir á ordem grammatical, e talvez colham o fructo de aprender alguma cousa da lingua materna.

JUIZO SOBRE A ENEIDA BRAZILEIRA.

Quiz o Ex. Sr. Conselheiro Vice-Reitor da Universidade que eu lesse e avaliasse a Eneida Brazileira ou a Traducção da Epopéa de Virgilio, por Manuel Odorico Mendes. Obedeci com a costumada promptidão, e a minha obediencia foi compensada com a leitura aprazivel desta nova traducção. Alli achei fielmente trasladados em a nossa lingua e idioma os conceitos, as paixões e os sentimentos do grande epico Latino, e sem diminuição nem accrescimo, repostas as suas mesmas imagens e ainda muitas das suas figuras. Bem sabia o Sr. Mendes que o verdadeiro traductor não deve ser paraphrasta, senão fiel copiador e retratista, fidus interpres. Alli apparecem postos em luz clara varios passos da Eneida onde illustres commentadores não haviam atinado com o genuino sentido, mas que o eximio traductor pôde alcançar. Isto ficará evidente a quem consultar as excellentes notas, que seguem cada um dos cantos do poema, e em que o mesmo ostenta vasta erudição e critica judiciosa e esclarecida.

Elegante, limada e polida é a sua phrase, e seus versos correm quasi sempre com facilidade, são de ordinario cadentes e numerosos. A perspicuidade, a precisão e ainda a concisão bem entendida, a propriedade dos termos, o gosto delicado; todas estas virtudes lá offerecem seu agradavel donaire. Esse grande segredo dos mestres, a harmonia imitativa, que ora pinta pela onomatopeia as qualidades sensi veis dos objectos, ora emprega a analogia dos numeros ou rhythmos com as idéas ou com os sentimentos; essa bella harmonia, a que nenhuma das linguas modernas se presta por ventura tanto como a nossa, em innumeraveis phrases e versos a descobrirá o leitor de tacto fino. Se fora proposito meu dar aqui toda a analyse da traducção, mũi longe me levaria a simples indicação dos versos onomatopaicos que nella brilham bastem para exemplo os que vou a citar.

Não pintam ao vivo o arquejo de um cansado estes hiatos: Crebro o anhelito abala os membros todos?

Não se figura bem a quéda do touro, derribado por Entello na quéda deste verso: Prostra-se, arca e no chão se estira o boi? Onde quasi se repõe o hemistichio latino, procumbit humi bos.

Não representa o uivo dos lobos aquelle verso: Enormes vultos ulular de lobos? Bem similhante ao original formæ magnorum ululare luporum; o que tambem faz lembrar o lupis ululantibus urbes.

O som dos marulhos, ferindo os rochedos, não parece ouvir-se aqui: Roucas do salso choque as rochas soam?

Não parece ver-se a hydra do Tartaro abrir suas boccas, neste passo Cincoenta atras guelas hydra enorme Dentro arreganha? E nest'outro, o rangido das portas sobre os gonzos e o sopro terrivel da trombeta guerreira : Os umbraes descerrando rangedores, — Proclama a guerra; guerra os moços bradam, Roucas ereas trombetas resonando?

E pelo contrario, que doçura na repetição da euphonica letra — 1 — neste logar: O collo inclina a languida papoila! O que nos traz á memoria aquell' outras onomatopeias do termo Mantuano Est mollis flamma medullas, e Mollia luteola pingit vaccinia caltha.

De maneira que, assim como nesta brilhante virtude foi a todos os poetas latinos mũi superior Virgilio, assim vejo sobresahir na mesma aos nossos o Sr. Mendes.

Muita graça dão tambem á sua dicção estes neologismos — circumvoar, empubescer, rechamar, alifugo, legifero, saxisonante. Mas em forjar palavras novas alguem quizera que tão bom traductor fosse mais sobrio : dabitur licentia sumptu pudenter. Quem souber todavia que, só nos Lusiadas, Camões introduzira duzentas palavras latinas, e que depois delle em todas as eras quasi todos os bons poetas as foram innovando, não estranhará tanto a sobejidão dos neologismos em todas as paginas desta traducção. Para estas innovações tinha o traductor pedido venia, e tem sua principal descarga na necessidade; sendo que, como elle em suas notas mostra, só por aquell' arte podia guardar a precisão, que tão justamente ama, e copiar a justeza das ideas e força dos pensamentos do seu prototypo. Nem esta liberdade, inventada no exemplo e no raciocinio, se negou jamais, nem se ha de negar, emquanto as boas letras tiverem preço, maiormente aos poetas. Assim o predisse o mais judicioso critico latino Licuit semperque licebit signatum præsente nota producere nomen.

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E' a poesia uma creação inspirada, e creadas idéas novas, força he crear palavras que as signifiquem. Mas quem traduz acha as idéas creadas; assim he mas, quando o traductor não descobre na lingua palavras que exprimam toda a força das idéas do auctor, que ha de fazer? Eis a necessidade. Não é porem o uso dos eruditos arbitro, o juiz e o rei da linguagem? Sim e eu antevejo que a auctoridade de tão grande philologo qual o Sr. Mendes, que já estimo, amo e respeito, ha de achar quem abrace os seus neologismos; ver-se-hão elles, correndo o tempo, entrar no dominio do uso. Assim se ha seguido o exemplo de outros; assim se tem enriquecido e hão de enriquecer as linguas. Puristas haverá de sentir menos conforme ao meu; embora : outros sentirão comigo. Grande é o serviço que à nossa litteratura fez o traductor. Longe de mim o rebaixar as traducções que já possuimos das obras de Virgilio, inteiras e em fragmentos, como o do quarto canto da Eneida admiravelmente traduzido por Manuel Mathias: mas das traducções completas é opinião minha, e não só minha, senão de dous respeitaveis litteratos, que esta traducção a todas leva a palma. A.-C.-B. DE Figueiredo.

O Ex. Sr. Vice-Reitor José Ernesto de Carvalho e Rego, accusando a recepção de um exemplar que o traductor, como filho da Universidade de Coimbra, offereceu à sua bibliotheca, remetteu-lhe este Juizo em 1855, affirmando que elle e o corpo cathedratico, em cujo nome tambem fallava, eram do mesmo parecer que o Sr. A.-C.-B. de Figueiredo, e honrando a obra com as mais lisongeiras expressões. Agradeço muito a benevolencia daquelles senhores, asseverando-lhes que não ha outra academia no mundo cuja approvação me possa causar tanto prazer, não só pela sua competencia, como pelas doces lembranças que tenho conservado sempre da saudosissima Coimbra.

Não ponho aqui a magistral analyse que dos meus versos fez o meu bom amigo e condiscipulo o Sr. Francisco Sotero dos Reis, porque todo o Brazil a tem lido. Grandemente folgo de obter os elogios de quem entre nós he dos que melhor conhecem a critica literaria. Grato The acceito a defesa que tomou dos meus neologismos, e ao publico affirmarei que a maior parte dos vocabulos que julgam da minha lavra sam renovações e não innovações, como se verá das notas desta edição. Se um autor inventa palavras para cousas novas, o mesmo direito cabe ao traductor, e ás vezes maior necessidade lhe assiste. Nem he crivel que pensamentos que houveram mister vozes estranhas á lingua original achem logo termos frisantes em outra ; antes he mais provavel

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