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clarecido pelo homem pratico, e dirigido por uma tendencia philosophica. Elle contentava-se com pouco; ambicionava a Historia da sua provincia, que effectuaria dignamente se a morte não atalhasse esses planos truncando uma tão fecunda existencia.

No intuito de servir este pensamento da sua vida é que João Francisco Lisboa acceitou a commissão official que na Europa exercia o seu conterraneo e poeta maranhense Antonio Gonçalves Dias, -o colligir documentos para a historia do Brasil. Estava perfeitamente a caracter. Em dezembro de 1855 realisou a sua viagem para a Europa, percorrendo a França, Inglaterra, Belgica, Italia e Hespanha, e veiu assentar o seu arraial em Lisboa. E' este um dos periodos mais interessantes da sua vida em relação a nós os portuguezes; Castilho dava o tom na litteratura do atrazado ultra-romantismo, e era admirado pelos seus arrebiques de estylo. João Francisco Lisboa manifestou-se contra essas admirações, que se constituiram pouco depois no elogio mutuo; a politica liberal era um embuste sem protesto, tendo-se transitado da violencia do cartismo sanguinario de Costa Cabral para o cartismo perfido do astuto Rodrigo da Fonseca Magalhães. A depressão moral era profunda na alta sociedade pela influencia devassa do allemão D. Fernando, e estava-se no periodo do fomento das obras publicas e dos emprestimos productivos. No meio d'esta crise João Francisco Lisboa não achava nos homens de letras communhão de espirito, a não ser em Lopes de Mendonça, que protestava e que manifestava paixão pela liberdade. Herculano, então o conselheiro intimo de D. Pedro V, estava cahido em um desalento, em uma descrença dos homens e das cousas, e influia terrivelmente no animo do joven monarcha. Comprehende-se que João Francisco Lisboa, que tanto se interessava pela doutrina historica do Municipio tratasse de approximar-se de Alexandre Herculano. Encontravam-se ahi ao Chiado, na loja de livros dos velhos Bertrands, escura, trescalando a bafio de papeis humidos, e silenciosa segundo os habitos do antigo commercio ; havia ahi um banco comprido de páo de pinho pintado em que Herculano se assentava com o lenço vermelho do rapé sobre o joelho e ahi dava expansão a um ou outro monosyllabo pejorativo e auctoritario. Os dois Bertrands, João e Francisco, eram os seus editores e fieis depositarios; Herculano estava em um estado de pessimismo crescente e pensava em deixar Lisboa pelo sonho da vida campestre. Foi n'esta crise de espirito que João Francisco Lisboa travou relações com Herculano; encontravam-se, fallavam pouco, e esse pouco era em tom elegiaco, de fórma que o escriptor Maranhense, que sentia já os primeiros ataques da doença de rins e bexiga, que o traziam apprehensivo, dizia em uma carta referindo-se ás relações com Herculano «é um macambuzio peior do que eu.» Vê-se, que embora se encontrassem casualmente lá de dois em dois mezes, a alma de Herculano permaneceu incommunicavel áquelle espirito ávido de luz que tanto o admirava, e a quem podia ter fortificado. A visita feita por João Fran

cisco Lisboa ao norte de Portugal em 1861 parece-nos ter sido suggerida por Herculano, que ainda acreditava nos homens das provincias do norte, como não contaminadas pelo regimen politico e capazes de uma acção energica.

A permanencia em Lisboa até á sua ultima viagem pela Europa em 1862 actuou immensamente nos seus estudos historicos pela pesquiza de documentos nos archivos das casas Castello Melhor e Niza.

A obra capital d'este periodo é a Vida do Padre Antonio Vieira, que se publicou depois da sua morte; é uma segunda elaboração de um primeiro trabalho que faz parte do Jornal de Timon, quadro que visava mais ás relações do Padre Vieira com as raças indigenas do Maranhão. N'este novo trabalho, João Francisco Lisboa tomou a grande figura do Padre Antonio Vieira como enchendo com a sua acção politica quasi todo o seculo XVII. E' um quadro primoroso, que illumina a historia de Portugal nas luctas da restauração da nacionalidade. Póde-se dizer que n'esse estudo consciencioso do homem e da época, mostrou-se um eminente historiador litterario. E por que não reconhecel-o? Desde que se escreveu a Vida do Padre Antonio Vieira tal como está, mesmo sem os retoques finaes que o seu auctor projectava, o Brasil ficou de posse das bases da sua Historia litteraria. Podem fabricar uma alma brasileira ao modo do homunculo do Fausto, fazendo a mestiçagem de preto degradado com o amarello indigena, para ser afinal eliminada essa abjecção pelo predominio de uma raça superior; mas com tal criterio não se poderá delinear ou esculpir com tanta vida um typo historico e verdadeiro como o Padre Antonio Vieira de João Francisco Lisboa. Depois da sua morte encontrou-se entre os seus papeis um maço embrulhado com um aviso no envolucro: «Estes papeis devem ser queimados sem serem lidos.» E' para aguçar a curiosidade.

Amigos sinceros do eminente escriptor conseguiram demover a piedade da sua viuva para não cumprir esta clausula; e desembrulhados os papeis que se deviam queimar sem serem lidos, eram nada menos do que a Vida do Padre Antonio Vieira, a sua obra capital! Refere este facto o Dr. Henriques Leal, mas não o explica. Que motivo intimo levaria João Francisco Lisboa a querer destruir essa obra de tanto estudo e de conclusões tão importantes? Por certo que não influia para isso qualquer negligencia de estylo, cuja perfeição nunca se attinge. Depois de ler toda a obra é que se comprehende o mysterio. João Francisco Lisboa estudando os factos historicos com sinceridade, e tirando deducções francas, desvendou um Padre Antonio Vieira muito differente d'esse varão apostolico esfumado pelo jesuita Padre André de Barros, e surprehendeu-o em flagrante delicto de intriga diplomatica pondo mesmo em jogo a existencia da nacionalidade portugueza.

Ergueu o véo da historia completamente com mão ousada, escrevendo para si, e no segredo da sua consciencia. O dar á publicidade

esse livro seria um acto de audacia, que deixaria a descoberto as traições da dynastia dos Braganças? O rótulo que impunha queimar sem ler mostra que antes queria sacrificar o seu trabalho ás conveniencias politicas. Mas, para proveito da historia, a Vida do Padre Antonio Vieira está publicada e forma a corôa litteraria de João Francisco Lisboa, tendo ja merecido as honras de ser plagiada por um padre jesuita francez que publicou uma Vida do Padre Vieira com aquillo que mais The conveiu aproveitar das descobertas do insigne escriptor maranhense.

Vamos resumir d'essa obra magistral as linhas nitidas d'esta grande figura, que nos põe a descoberto o plano da Companhia de Jesus na questão da independencia de Portugal. Pelo papel historico do Padre Vieira conclue-se que foi - exclusivamente jesuita - para quem «toda a patria é uma terra estrangeira, e toda a terra estrangeira uma patria.» Trabalhou para os interesses da Companhia, á qual, depois de estabelecida a paz entre a França e a Hespanha, interrompida desde o seculo XVI, não convinha que este pequeno territorio de Portugal continuasse autonomo entre estas duas potencias. Emquanto a Companhia de Jesus teve de luctar com Philippe II, que votava as suas sympathias á Inquisição e aos Dominicanos, convinha-lhe a ella a autonomia de Portugal como ponto de apoio da sua resistencia; porém, desde que Philippe II comprehendeu o jogo da Companhia facultando-lhe o desenvolver-se por toda a Hespanha, entendeu logo a Companhia abandonar Portugal ao seu isolamento, certa de que nada perdia da sua influencia na peninsula iberica sob a unificação do go. verno da Casa de Austria.

Quando pela politica franceza de Sully e de Richelieu, que tendia ao enfraquecimento da Casa de Austria, se reconheceu que a independencia de Portugal era um dos meios mais seguros para realisar esse golpe, ficaram assegurados os resultados da revolução de Portugal depois da missão secreta de Mr. Saint-Pé, que aqui viera garantir um contingente militar e uma esquadra no caso de mallogro da revolução nacional. Foi com este apoio e para a cooperação da politica franceza, que se fez a Revolução de 1640. Parecia natural que ficassemos como nação livre cultivando a alliança franceza e justificando-nos com ella. Deu-se no emtanto a paz entre a França e a Hespanha ; os Jesuitas, que durante o seculo XVI não conseguiram estabelecer-se estavelmente em França, eram no seculo XVII os omnipotentes directores espirituaes e temporaes do Rei christianissimo. Portugal, que fôra o quartel general da Companhia, o campo neutro das suas operações quando estavam em hostilidade a França e Hespanha, agora, que estavam conciliadas as duas nações, Portugal tornava-se um estorvo para a Companhia por causa da sua impertinente autonomia. Tal é a situação, o quadro diplomatico em que nos apparece a intervenção ou acção historica do Padre Vieira.

Quando chegou ao Brasil a noticia da Revolução portugueza, e que

a nação redimida delegara a soberania na pessoa do Duque de Bragança pelas côrtes de 1641, o vice-rei da Bahia, que fôra nomeado pelo governo de Castella, reconheceu a independencia de Portugal e mandou seu filho D. Fernando de Mascarenhas á Europa offerecer a sua homenagem ao monarcha proclamado pela nação. O Padre Antonio Vieira acompanhou o filho do vice-rei como seu habil mentor, e n'esse mesmo anno de 1641 já o jesuita se achava junto de D. João IV propondo-lhe gigantes planos de Companhias de Commercio para a India e Brasil á imitação das hollandezas. Por subtis suggestões assim se apoderou do animo de D. João IV, tendo entrada franca no paço e nas secretarias de Estado, assistindo ás conferencias dos ministros, possuindo a cifra dos embaixadores, e emitindo o seu parecer antes das resoluções dos tribunaes. Em summa, o tibio D. João IV diante de tão absorvente actividade e da omnipotencia dialectica do Padre Vieira, só lhe pedia uma coisa - que não empregasse labia! E' textual. O Padre Vieira tratou de convencer D. João IV, que lhe seria impossivel resistir á Hespanha se esta potencia se ligasse á Hollanda; e que para evitar este perigo, mais seguro era, para estabilidade do seu throno e dynastia, abandonar Pernambuco e a Bahia aos Hollandezes, dando-se desde logo em penhor uma fortaleza no reino, fazendo a paz com elles, ficando assim a lucta com a Hespanha reduzida a uma guerra defensiva.

Felizmente, o Desembargo do Paço foi de opinião, que realisando-se este plano do jesuita, sobre o qual o rei o mandara consultar, seria sem mais nem menos a perda do Brasil, e o reino de Portugal reduzir-se-hia a um territorio isolado, á situação de uma pequena Galiza, de incorporação facil e inevitavel. Para a Companhia de Jesus, que o Brasil fosse dos Portuguezes ou dos Hollandezes era isso indifferente para o vasto emporio mercantil que estava alli fundando. D. João IV não pôde realisar os planos do Padre Vieira; por que achando-se o Brasil abandonado pelo governo de Portugal as guerras dos Hollandezes, as colonias portuguezas, pela sua propria energia e sob o commando dos sublimes patriotas João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros, sacudiram o jugo estrangeiro, e depois de libertarem o seu territorio, offereceram-se espontaneamente á obediencia da metropole, que as abandonara!

O Padre Vieira mudou promptamente de politica; não pôde effectuar-se a offerta de Pernambuco aos Hollandezes como preço da paz, e em vez d'isso tratou de engenhar varios planos de casamentos principescos para assegurar a estabilidade do throno a D. João IV á custa do holocausto da nacionalidade portugueza ou á França ou á Hespanha.

Com uma missão secreta partiu o Padre Antonio Vieira para Paris encarregado de tratar do casamento do principe D. Theodosio com a filha do Duque de Longueville, vindo Condé governar Portugal como uma especie de Protector, e D. João IV iria ser rei do Brasil, apro

veitando o acendrado patriotismo das Colonias portuguezas, que se tinham libertado dos Hollandezes. Este plano, achado em um manuscripto do Archivo da Casa do Marquez de Niza, não chegou a realisar-se pela circumstancia fortuita de a Duqueza de Longueville apparecer

casada clandestinamente com Lauzan.

Sempre fertil em expedientes e com labia, o Padre Vieira architectou outro plano de casamento do principe D. Theodosio com a filha mais velha do Duque de Orleans, Mademoiselle de Montpensier. O pae da noiva vinha tomar conta do governo de Portugal. O Duque de Orleans, vendo os negocios de Portugal mal parados, não acceitou a proposta, allegando que tinha certos compromissos com o Pretendente de Inglaterra. Mais lhe foi proposto que ficaria o principe rei do Algarve, casando a infanta D. Catherina com o Duque de Beaufort. Por via do casamento d'esta infanta é que se entregou Bombaim á Inglaterra, que apoderando-se logo d'essa parte do imperio da India nunca mais deixou o leilão d'esta nacionalidade como fiel alliada.

O biographo jesuita André de Barros, conta como o Padre Vieira se achou em Roma em 1649, combinando com o jesuita Gonzales de Mendoza o arranjarem o casamento do Principe D. Theodosio com a irmã de Carlos II de Hespanha, unificando-se assim as duas nações. O embaixador hespanhol Duque do Infantado enfureceu-se quando o jesuita seu adjunto lhe communicou este plano, e ameaçou o Padre Antonio Vieira de mandar assassinal-o, alardeando que o seu rei Carlos II não tratava com um rebelde, e que lhe pertencia Portugal sem recorrer á indignidade de um tal casamento.

Vivendo e respirando na atmosphera da intriga politica, o Padre Vieira, que andava munido de plenos poderes para tratar d'estes casamentos reaes, e como o de D. Theodosio falhara, architectou uma empreza: volveu-se para um projecto de casamento da infanta D. Catherina com D. João de Austria; e por accordo com a Hespanha, D. João IV passaria para o Brasil com o titulo de Rei. Mas o rei de Hespanha não chegou ao preço; não queria dar tanto pelo reino de Portugal, e limitava-se, segundo Mr. Vicoquefort, a consentir que D. João IV ficasse Rei do Archipelago dos Açores, ou, por ultimo alvitre, simplesmente rei da Sicilia. Falharam todas estas intrigas em que o Padre Vieira se poz tanto em evidencia, deixando quasi que a descoberto o jogo diplomatico da Companhia de Jesus. Por este motivo foi mandado recolher ao Maranhão em 1650. Já no Maranhão recebeu a noticia do falecimento do Principe D. Theodosio em 1553, com dezenove annos de edade. A morte em seguida de D. João IV não embaraçou Vieira na elaboração dos seus antigos planos. Segundo instrucções secretas de D. João IV á rainha D. Luiza de Gusmão, quando ella não podesse sustentar a guerra defensiva contra a Hespanha, devia abandonar Portugal ao invasor e fugir para o Brasil com a familia real e ali fixar o throno e a Dynastia de Bragança. Em 1660, vendo D. Luiza de Gusmão que, pelo tratado dos Pyreneos entre a França e a

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